Durante muito tempo, as intervenções cirúrgicas com finalidade estética em cães e gatos eram plenamente praticáveis, sendo tais procedimentos objeto de decisões judiciais somente no tocante à falha na prestação de serviços veterinários, ou seja, nos casos em que o resultado estético não ficava a contento do dono(1).
Assim, diversos cães tiveram suas orelhas cortadas e sua cauda amputada em nome da beleza exigida em competições ou por mero capricho de seus tutores. Isso sem contar os procedimentos de corte das cordas vocais naqueles casos de cães que latiam em demasia, e a aputação da falange distal dos gatos, para evitar danos os temidos danos à mobília(2).
Felizmente, com o aprimoramento nas normas regulamentadoras da medicina veterinária, pautadas não somente nos prejuízos que tais procedimentos acarretam à saúde dos animais a eles submetidos, como também na conscientização, cada vez maior, de que os animais são seres sencientes, o Conselho Federal de Medicina Veterinária publicou, em fevereiro de 2008, a Resolução n° 877, dispondo, entre outros procedimentos, sobre "cirurgias mutilantes em pequenos animais".
Entretanto, com a edição da Resolução n° 877/2008 somente foram proibidas, no art. 7°, as práticas da "conchectomia" (corte das orelhas) e da "cordectomia" (retirada das cordas vocais) em cães, e da "onicectomia" (retirada das unhas) em gatos, remanescendo a "caudectomia" (retirada da cauda) apenas como "procedimento cirúrgico não recomendável na prática médico-veterinária"(3). Ou seja, o corte da cauda do cachorro figurava somente como prática não recomendável, apesar de o caput do art. 7° da Resolução proibir "as cirurgias consideradas desnecessárias ou que possam impedir a capacidade de expressão do comportamento natural da espécie"(4).
Após 5 anos de muita polêmica, em maio de 2013 a Resolução CFMV n° 1.027 promoveu alteração na Resolução 877/2008, revogando o § 2° do seu art. 7°, para incluir a "caudectomia" entre "os procedimentos proibidos na prática médico-veterinária"(5). A partir de então, o veterinário que cortar a cauda de um cachorro sem necessidade médica estará sujeito a processo ético-profissional, que pode redundar na suspensão do seu registro perante o Conselho(6).
Contudo, apesar da proibição imposta pelo CFMV, ainda se observa muitos cães com caudas e orelhas cortadas, em situação de flagrante mutilação estética, o que nos remete à seguinte indagação: se a resolução se aplica apenas aos médicos veterinários, a quais penalidades estão sujeitas os leigos que praticam tais amputações?
Há casos em que os próprios criadores realizam as amputações estéticas nos animais a serem vendidos(7). É importante deixar claro que tais condutas são consideradas como mutilações, inserindo-se no art. 32, da Lei 9.605/98, que prevê pena de detenção de três meses a um ano e multa(8).
Assim, sendo verificada a prática, por médico veterinário, de qualquer procedimento proibido pela Resolução n° 877/2008, deverá ser realizada denúncia ao Conselho Federal de Medicina Veterinária ou ao Conselho Regional do estado onde atue o profissional. Cumpre referir que as penalidades administrativas não excluem aquelas previstas na Lei 9.605/98.
Da mesma forma, se a mutilação for praticada por pessoa que não seja profissional da medicina veterinária, deverá ser feita denúncia perante o Ministério Público do estado onde tenha ocorrido a prática.
Por fim, é preciso dizer que a natureza é muito sábia, de forma que não daria ao cão determinadas orelhas ou cauda à toa. Ainda, é normalmente esperado de um cão o ato de latir, erguer as orelhas e abanar a cauda, assim como é inerente ao gato arranhar. Permitir tais intervenções cirúrgicas, por mero capricho, significaria tolher a capacidade do animal de se expressar, algo que é extremamente essencial para a sua sobrevivência.
Notas:
(1) AÇÃO DE
INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS. Pedido de indenização por erro
cometido por médico veterinário na cirurgia denominada
"conchectomia" realizada no cão da raça dobermann,
propriedade do autor. O erro consistiu no corte errado das orelhas do
animal, inferior ao tamanho oficial fato que impede a sua
participação em concursos da raça. Sentença de
improcedência.Apela o autor, sustentando que houve erro praticado na
cirurgia da orelha de seu cão dobermann e que tal erro impediu
definitivamente a participação do cão em exposições; sem
prêmios, o valor comercial dos filhotes será reduzido, implicando
prejuízo de grave monta; a perícia não espelha a realidade, uma
vez que o animal já havia passado por procedimento restaurador;
deixa prequestionados os artigos 186 do Código Civil e 37, VI, da
Constituição Federal.Descabimento.O autor não comprovou suas
alegações. A perícia conclui não haver evidências de erro
cirúrgico praticado pelo réu.Sentença de improcedência. Recurso
improvido.(TJ-SP - APL: 232954420098260554 SP
0023295-44.2009.8.26.0554, Relator: James Siano, Data de Julgamento:
14/12/2011, 5ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação:
14/12/2011) – OBS.: Cirurgia realizada antes de 2008.
AÇÃO DE
REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS E MATERIAIS - CIRURGIA REPARADORA NAS
ORELHAS DE CÃO DE RAÇA - RESULTADO NÃO ESPERADO - CLÍNICA
VETERINÁRIA - AUSÊNCIA DE CULPA. - A responsabilidade pelo
resultado inesperado em cirurgia reparadora realizada em animal de
raça, deve ser atribuída diretamente ao profissional veterinário
que a realizou, desde que provado que descurou das normas de sua
profissão. Mas, não tendo sido alegado qualquer defeito na
prestação de serviços prestados pela clínica veterinária
apelada, ou que agiu esta sem a observância necessária do seu dever
de segurança, fica afastada a sua responsabilidade pelos danos
materiais e morais ao proprietário do animal. (TJ-MG - AC:
10183081506143001 MG , Relator: Batista de Abreu, Data de Julgamento:
06/03/2013, Câmaras Cíveis Isoladas / 16ª CÂMARA CÍVEL, Data de
Publicação: 15/03/2013)
(2) Muito
comum nos EUA, a onicectomia – declawing, em inglês – é alvo de
inúmeras críticas por parte de ativistas e ongs internacionais
voltadas á proteção animal, tais como Peta e The Paw Projetc.
Assista ao vídeo da campanha que conscientiza as pessoas sobre essa
terrível prática: <https://www.youtube.com/watch?v=2NQOzwj41Pc>
(3) Art. 7°.
[...] § 1° São considerados procedimentos proibidos na prática
médico-veterinária: conchectomia e cordectomia em cães e,
onicectomia em felinos. § 2° A
caudectomia é considerada um procedimento cirúrgico não
recomendável na prática médico-veterinária.
(4) Art. 7°,
caput: Ficam proibidas as cirurgias consideradas desnecessárias ou
que possam impedir a capacidade de expressão do comportamento
natural da espécie, sendo permitidas apenas as cirurgias que atendam
as indicações clínicas.
(5) [...]
Resolve: Art. 1º Alterar o § 1º, artigo 7º, transformando-o em
parágrafo único, e revogar o § 2º, artigo 7º, ambos da Resolução
nº 877, de 2008, publicada no DOU nº 54, de 19/3/2008 (Seção 1,
pg.173/174), que passa a vigorar com a seguinte redação: "Parágrafo
único. São considerados procedimentos proibidos na prática
médico-veterinária: caudectomia, conchectomia e cordectomia em cães
e onicectomia em felinos."
(6) Importante
ressaltar que o caput do art. 7° da Resolução n° 877/2008, proíbe
"as cirurgias consideradas desnecessárias", ou seja,
havendo enfermidade que justifique a amputação das orelhas ou cauda
do animal, o médico veterinário poderá fazê-lo, não incidindo em
infração disciplinar.
(7) "Na
própria inicial confessou o apelante que o filhote, quando comprado,
veio do canil com as orelhas já cortadas e presas por um fio de
nylon fixado em botões pregados nas orelhas, e que após a retirada
destes botões as orelhas deveriam permanecer eretas, o que não se
verificou com a orelha esquerda, necessitando de outra cirurgia
reparadora." Trecho do acórdão AC: 10183081506143001 do TJ-MG,
julgado pela 16ª Câmara Cível em 06/03/2015, cuja ementa foi
citada na nota "(1)".
(8) Lei
9.605/98. Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou
mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou
exóticos: Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa. [...]
§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte
do animal.
*Texto de
Luciana Peretti para JUS Animal