quarta-feira, 25 de março de 2015

PARA QUE(M) SERVE A LEI DOS RODEIOS?

 Lamentavelmente, a prática cruel dos rodeios é plenamente permitida pela legislação brasileira. Importa, no entanto, conhecermos a lei que regulamenta tais eventos para que seja possível confrontar seus ditames com a nossa Lei Máxima, a Constituição Federal, que proíbe práticas que “submetam os animais a crueldade(1)”.

Vigente há mais de dez anos, a Lei n° 1...0.519/2002 foi criada para regulamentar a realização dos RODEIOS tendo em vista tratar-se, conforme definição constante do projeto que lhe deu origem, o PL4.495-B de 1998(2), de um “espetáculo de crescente importância econômica, vez que vem assumindo papel relevante na geração de empregos e renda, principalmente no interior do País”.

Logo, apesar de ter sido ementada dispondo “sobre a promoção e fiscalização da defesa sanitária animal quando da realização de rodeios, além de zelar pelo correto manejo dos animais envolvidos na prova, de forma a preservar a sua integridade,” o real objetivo da Lei n° 10.519/2002 é econômico, ou seja, visa precipuamente a promoção da defesa sanitária dos animais, com vistas a evitar barreiras no comércio de produtos agropecuários.

Mas, quanto aos animais que figuram como objetos do dito “espetáculo”, que tutela jurídica a Lei dos Rodeios lhes destina?

Conforme conceituação constante do parágrafo único do art. 1° da Lei n° 10.519/2002, os “rodeios de animais” consistem em “atividades de montaria ou de cronometragem e as provas de laço, nas quais são avaliados a habilidades do atleta em dominar o animal com perícia e o desempenho próprios do animal(3).”

O artigo 3° da lei determina diversas providências a serem adotadas pela entidade promotora do rodeio, tais como o transporte dos animais em veículo apropriado e instalações com infraestrutura que garanta a integridade física deles durante a sua chegada, alimentação e acomodação. Determina, ainda, providências quanto a montagem da arena, que deverá ter o piso de areia ou outro material acolchoador que amorteça o impacto do animal e do peão durante a prova, e exige que os bretes sejam cercados com material resistente.

A lei torna obrigatória, ainda, a presença de um médico veterinário, que será responsável pelo cumprimento das normas disciplinadoras, garantindo a boa condição física e sanitária dos animais e impedindo a ocorrência de maus tratos e injúrias aos mesmos.

No tocante aos objetos utilizados nas provas de rodeio, o art. 4° da lei expressamente determina que os apetrechos técnicos não poderão causar injúrias ou ferimentos aos animais, devendo as cintas, cilhas e as barrigueiras serem confeccionadas em lã natural com dimensões adequadas para garantir o conforto do animal e que as cordas utilizadas nas provas de laço deverão dispor de redutor de impacto(4).

Destaca-se a proibição quanto ao uso de aparelhos que provoquem choques elétricos e esporas com rosetas pontiagudas ou qualquer outro instrumento que cause ferimentos nos animais.

As penalidades para o caso de descumprimento das exigências e proibições previstas na lei vão desde mera advertência por escrito, até suspensão definitiva do rodeio, sem prejuízo da pena de multa(5).

Mesmo com objetivo econômico, a Lei 10.519/2002 tulela, ainda que minimamente, o direito dos animais utilizados nos eventos, na medida em que traz, além de vedações ao uso de determinados apetrechos que possam causar ferimentos aos bichos, regramentos relativos à infraestrutura, transporte e acomodação dos mesmos, e que caso sejam descumpridos, sujeitarão o infrator a penalidades administrativas.

É importante referir que a própria Lei dos Rodeios não exclui a incidência de outras penalidades previstas em legislações específicas caso seja verificado qualquer ato de abuso, maus-tratos, mutilamentos ou injúria de qualquer ordem aos animais utilizados nos rodeios(6).

Dessa forma, sempre que for verificada a prática de qualquer ato ou a utilização de qualquer equipamento que imponha sofrimento aos animais durante esses eventos, o Ministério Público poderá ser imediatamente acionado. Inclusive, algumas modalidades de provas abrangidas pelos rodeios, tais como a “vaquejada”, o “calf roping”, o “team roping” ou “laçada dupla” e o “bulldogging”, têm sido objeto de ações propostas pelo Ministério Público por se tratarem de práticas proibidas que causam sofrimento extremo e, não raras vezes, a morte dos animais(7).

Por fim, importa fazer constar que quando comprovada a prática de abusos aos animais submetidos aos rodeios, o Judiciário não tem medido esforços em penalizar os infratores. Assim, conhecendo o que diz a lei poderemos nos tornar cada vez mais protagonistas na busca pela JUSTIÇA e pelo DIREITO DOS ANIMAIS(8).



 Notas:
(1) CF/88. Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações. § 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.
(2)PL 4495-B, de 1998 - Disponível em <http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD21JUN2000.pdf#page=310> e LEI N° 10.519/2002 - Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/L10519.htm>
(3) A Lei nº 10.220/2001, “Institui normas gerais relativas à atividade de peão de rodeio, equiparando-o a atleta profissional.” Art. 1º. Considera-se atleta profissional o peão de rodeio cuja atividade consiste na participação, mediante remuneração pactuada em contrato próprio, em provas de destreza no dorso de animais eqüinos ou bovinos, em torneios patrocinados por entidades públicas ou privadas. Parágrafo único. Entendem-se como provas de rodeios as montarias em bovinos e eqüinos, as vaquejadas e provas de laço, promovidas por entidades públicas ou privadas, além de outras atividades profissionais da modalidade organizadas pelos atletas e entidades dessa prática esportiva.
(4) LEI N° 10.519/2002. Art. 4o Os apetrechos técnicos utilizados nas montarias, bem como as características do arreamento, não poderão causar injúrias ou ferimentos aos animais e devem obedecer às normas estabelecidas pela entidade representativa do rodeio, seguindo as regras internacionalmente aceitas. § 1o As cintas, cilhas e as barrigueiras deverão ser confeccionadas em lã natural com dimensões adequadas para garantir o conforto dos animais. § 2o Fica expressamente proibido o uso de esporas com rosetas pontiagudas ou qualquer outro instrumento que cause ferimentos nos animais, incluindo aparelhos que provoquem choques elétricos. § 3o As cordas utilizadas nas provas de laço deverão dispor de redutor de impacto para o animal.
(5) LEI N° 10.519/2002. Art. 7°. No caso de infração do disposto nesta Lei, sem prejuízo da pena de multa de até R$ 5.320,00 (cinco mil, trezentos e vinte reais) e de outras penalidades previstas em legislações específicas, o órgão estadual competente poderá aplicar as seguintes sanções: I – advertência por escrito; II – suspensão temporária do rodeio; e III – suspensão definitiva do rodeio.
(6) LEI N° 9.605/98. Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa. § 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos. § 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.
(7) 'Vaquejada' - quando peões seguram fortemente o animal pela cauda para ser contido na fuga; 'calf roping' – bezerros, com quarenta dias de vida, são tracionados no sentido contrário em que correm, erguidos e lançados violentamente ao solo, em prática que além de causar lesões podem levá-los à morte; 'team roping' ou 'laçada dupla' – prática em que um peão laça a cabeça de um garrote, enquanto outro laça as pernas traseiras, na sequencia o animal é esticado, ocasionando danos na coluna vertebral e lesões orgânicas” (Trecho do voto do Des. Castilho Barbosa do TJSP – AGRV n. 419.225.5/5, de 30.01.2007; citado na obra de LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 12. ed. São Paulo: Saraiva; 2008, p. 744)
“'Bulldogging': com o cavalo em galope, o peão dele se atira sobre a cabeça de garrote em movimento, o agarra pelos chifres e torce violentamente seu pescoço; há, assim, deslocamento de vértebras, rupturas musculares e lesões advindas do impacto na coluna vertebral”; “Montaria cutiana”, “bareback” e “sela americana”: consistem em montar o peão animal (eqüino, bovino ou muar) e sobre ele se manter enquanto salta, sendo comum o uso de esporas, sedém, sinos, peiteiras e choques elétricos, instrumentos utilizados para deixar o animal assustado e nervoso, bem como para submetê-lo a dor, o que faz com que corcoveie. (PANICACCI, Fausto Luciano. Os rodeios e a jurisprudência paulista sobre as práticas que submetem animais a crueldade. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3244, 19 maio 2012. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/21812>. Acesso em: 31 ago. 2014)
(8) AÇÃO CIVIL PÚBLICA. RODEIO. MAUS TRATOS A ANIMAIS. VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL. DANOS MORAIS COLETIVOS NÃO COMPROVADOS. APELAÇÕES PARCIALMENTE PROVIDAS. 1. Cuida-se de Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público Federal em face do Município de Seropédica e da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ em razão da ocorrência de abusos e maus tratos a animais durante a realização da XIII Expo Seropédica, realizadas em terreno de propriedade da UFRRJ. 2. […] 3. Restou amplamente comprovada a ocorrência de maus tratos a bovinos e equinos em rodeios realizados na XIII Expo Seropédica, em grave afronta às normas reguladoras da atividade, tendo, sido utilizados instrumentos cortantes e de choque. 4. A Constituição Federal expressamente veda a prática de crueldade com animais em seu art. 225, § 1º, inciso VII, sendo tipificado como crime, pelo art. 32 da Lei nº 9.605/98, o ato de abuso e maus tratos a estes. Da mesma forma, a Lei nº 10.519/2002, que regulamenta a promoção e a fiscalização da defesa sanitária animal quando da realização de rodeio, proíbe a prática e o uso de instrumentos que cause ferimentos e injúrias nos animais, incluindo aparelhos que provoquem choques elétricos. 5. Em que pese seja legal a realização de rodeios, estes, por obvio, não podem submeter animais a atos de crueldade, devendo observar a legislação pátria no tocante ao tema. Trata-se de medida de repressão às práticas cruéis à animais, e não de rodeios. 6. Não merece reparo a sentença no tocante à proibição do Município de Seropédica de promover ou conceder licenciamento de rodeios que submetam animais a atos de crueldade; e da UFRRJ de ceder seus terrenos para tais eventos, uma vez que se trata de ordem constitucional à proteção aos animais que coíbe práticas cruéis e aptas a gerar maus tratos. 7. […] 8. Apelações parcialmente providas. (TRF-2 - AC: 201151010117643 , Relator: Desembargador Federal Guilherme Diefenthaeler, Data de Julgamento: 03/06/2014, Quinta Turma Especializada, Data de Publicação: 16/06/2014)

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. Vedação do uso de instrumentos, em rodeio ou festa de peão, que inflijam maus-tratos aos animais - Procedência Incidência do inciso VII do § 1º do art. 225 da CRFB Exegese da Lei nº 10.519/02, em conformidade com os preceitos constitucionais de proteção ao meio ambiente, sobretudo, aos animais Vedação de atos que possam causar injúrias ou ferimentos aos animais, de acordo com o art. 4º da Lei 10.519/02 - Concessão de alvará pelo Poder Público Municipal que deve se ater aos ditames legais Inteligência do art. 23 da CRFB Recurso provido em parte. (TJ-SP - APL: 00023821020128260498 SP 0002382-10.2012.8.26.0498, Relator: Moreira Viegas, Data de Julgamento: 18/07/2013, 1ª Câmara Reservada ao Meio Ambiente, Data de Publicação: 07/08/2013)
 RECURSO CRIME. NULIDADE ABSOLUTA. NÃO OFERECIMENTO DA TRANSAÇÃO PENAL QUANDO O AUTOR DO FATO A ELA FAZIA JUS. PRESCRIÇÃO. AMBIENTAL. ART. 32, CAPUT, DA LEI Nº. 9.605/98. ABUSO E MAUS TRATOS A CAVALOS. SENTENÇA CONDENATÓRIA MANTIDA. [...] Desnecessidade da produção de prova pericial na medida em que os verbos nucleares consistentes em praticar atos de abuso e de maus-tratos prescindem da produção de tal prova, por consistir aquele na utilização imoderada do animal, enquanto este representa o tratamento inadequado a ele dispensado, não se exigindo, nas duas hipóteses, deixe vestígios. Por certo que a utilização abusiva de animal corresponde a submetê-lo a trabalhos que se mostrem exagerados, ultrapassem os seus limites, correspondendo a uma utilização imoderada deste, situação que não restou configurada nos autos. Agressão imoderada dos animais a fim de estimulá-los a correr que permite reconhecer a prática de maus-tratos. Ausência de adequação social da conduta, que não pode ser comparada a outras tidas como lícitas tais como lidas campeiras, corridas de cavalo em hipódromos e rodeios. Ademais, nem mesmo na hipótese de adequação social da conduta, que não se reconhece na hipótese, se haveria de admitir que, de forma imoderada, fosse açoitado o eqüino, tal como fez o acusado para fazê-lo correr mais. […] (Recurso Crime Nº 71003345063, Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais, Relator: Luiz Antônio Alves Capra, Julgado em 28/11/2011)
** Texto de Luciana Peretti para o JUS Animal.

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